Até onde você iria para realizar os seus sonhos?
Essa é a pergunta com a qual me deparei na capa de John Redding Vai Ao Mar, um conto da escritora, antropóloga, folclorista, roteirista e cineasta norte-americana Zora Neale Hurston (1891-1960), publicado originalmente em 1921, traduzido e publicado exclusivamente pelo Clube da Caixa Preta. De forma independente, o Clube é uma iniciativa de resgatar clássicos pretos que nunca foram publicados por aqui, a partir de um financiamento coletivo. Dentre os contos que recebi mensalmente e que li, este foi o que mais gostei e cá estou para falar sobre ele. Bora?!
Mas antes da primeira braçada, vamos mergulhar na sinopse:
John Redding é um menino nascido num vilarejo tão recluso, que as pessoas nasciam e morriam por lá mesmo. O povo não tinha o desejo de sair de lá e explorar outros lugares, o que não era o caso do sonhador John, cujo objetivo era ir além dos limites do local e conhecer o mundo. Mas, para isso, John precisará da aceitação e da benção de sua receosa mãe.
O conto começa interessante ao explorar a subestimação do sonho infantil, quando uma criança se destaca das demais pela sua inteligência, criatividade e imaginação. O que algumas pessoas costumam, cercear ou até mesmo desdenhar, Matty, mãe e de John Redding afirmava que seu filho fora enfeitiçado por uma bruxa, tese esta que não agradava Alfred, pai de John. É com essa premissa que a autora Zora Neale, com a excelente tradução de Karine Ribeiro, nos presenteia com este conto que nos mostra, numa leitura fluida e envolvente, a vida de John e e sua perseguição ao sonho de ir além dos limites daquele mar, que fazia sua imaginação flutuar junto aos pequenos galhos que lançava às águas, como barcos que o levariam para onde ele quisesse.
Em John Redding Vai Ao Mar, podemos ver diferentes sonhos (no sentido de objetivos de vida mesmo), os quais levam o leitor a uma profunda reflexão sobre como classificar um sonho, uma vontade, como sendo mais importante que o outro. Isso me fez lembrar um pouco a recente animação da Disney/Pixar, Soul, pois há sonhos ditos como pequenos pela sociedade e, por vezes, os sonhos aos quais esta nos “insere”, na medida em que achamos serem grandes e, por vezes, elitistas, podem não ser de fato positivos e corretos para todos.
A representação feminina neste conto me causou um pouco de estranheza, mas aos poucos, na medida do possível e com muito custo, foi sendo compreendido por mim. Isso, porque as figuras femininas presentes neste conto transbordam de uma dependência emocional, depositando sonhos no filho ou no marido. Tudo bem que pode-se até considerar que há figuras masculinas que exerçam tal comportamento, porém, não consegui vê-lo como algo nocivo ao protagonista, pois era exercido como apoio nesse desejo de não desistir dos sonhos, o que difere totalmente das figuras femininas, que exigiam a permanência de John no vilarejo. Não consigo ver isso como um egoísmo seja de quais forem os personagens, mas sim como um reflexo da limitação do feminino imposta pela sociedade, que pode impedir as mulheres de irem além, ou ainda, dos homens não estender esse tipo de liberdade às mulheres, dada a determinada situação do conto. Por vezes, isso poderia também transparecer certa possessividade das personagens.
Pode ser que eu esteja viajando na imaginação, mas observei um forte simbolismo com a árvore. Ok, sei que o título fala de mar, o conto fala de mar, mas ele também fala de árvores e estas “falaram” com John Redding e comigo também. Pode parecer que estou “viajando” na minha imaginação, mas isso é o que o protagonista faz e essa é uma das intenções da leitura. Então, vamos lá: John reclamava de uma árvore que ria dele, “como se risse de uma piada”, que seria posta como a sociedade que duvida do crescimento do personagem.
A árvore também tem significados, quanto à algumas partes que a compõe. Assim como o mar, os galhos significam a liberdade, a viagem sonhada, que está ligada aos homens do conto. As raízes da árvore, seriam as mulheres ali representadas, pois estas desejam permanecerem fincadas no chão onde nasceram e onde pretendem morrer. Já as folhas da árvore seriam o tempo de ambos os personagens passando indo embora, sendo levados pelo vento, um elemento que significaria a vida que carrega esse tempo, que passa e não volta mais. Vale ressaltar que a árvore tem uma grande importância na cultura africana, pois é debaixo delas que histórias são contadas, que ensinamentos sobre a vida são passados, onde os legados dos mais velhos são deixados para os mais novos. Portanto, creio que Zora Neale não colocou no conto à toa esse ingrediente que tem tanto significado para a cultura negra, para os antepassados.
Com um final bem intenso, doloroso e, ao mesmo tempo, bonito e poético, John Redding Vai Ao Mar é uma ótima leitura para quem gosta de uma leitura rápida como o conto costuma ser, mas bastante envolvente, emocionante e reflexivo. Você conseguirá ler este e outros clássicos maravilhosos de autores negros, todos os meses, apoiando o Clube da Caixa Preta, idealizado pelo escritor e roteirista Stefano Volp. Vale muitíssimo a pena! Logo voltarei aqui para falar de outros contos maravilhosos.
“Eu sou Groot” e professora. Adoro assistir filmes e séries; ler livros e HQs e “eu QUERIA fazer isso o dia todo”. Espero ter “vida longa e próspera”…