Tropicalidade foi o tema do Clube da Caixa Preta do mês de março, para falar sobre o conto Os Ratos do Cais, do escritor e jornalista afro-caribenho Eric Walrond (1898-1966). Por ter morado em muitos lugares diferentes, Walrond extraiu muito conteúdo para sua escrita desses locais por onde passou, principalmente do Panamá. Dos lugares por onde passou, tropicais ou não, surgiram obras como Os Ratos do Cais, conto traduzido pela primeira vez para o português e do qual falaremos hoje, sem spoiler, lógico! Me acompanhe!
Mas, antes do mergulho, a sinopse:
Philip e Ernest são os dois filhos de Jean Baptiste. Philip é muito amigo de Maura, uma vizinha sonhadora, que nutre sentimentos pelo chinês San Tie. Ela sempre pede à Maffi, uma menina cuja família de Philip acolheu, para pedir que Philip venha a seu encontro, como se fosse uma garota de recado, deixando Maffi irada. Tudo isso para que Philip traga informações a respeito do chinês. Os filhos de Jean Baptiste se emprenham a todos os dias mergulharem em águas perigosas, em busca de moedas atiradas pelos turistas. Esta é uma história dos fieis de obeah que buscam paz para si.
Este conto compõe um livro de crônicas escrito por Eric Walrond, onde ele aborda assuntos voltados para a tropicalidade, algo que é vendido para a elite branca como um paraíso, como um lugar onde se pode viver e fazer o que quiser. O contexto do conto gira em torno desta tropicalidade paradisíaca vendida à turistas que chegavam em seus navios e lançavam moedas ao mar para que homens negros se sujeitassem a mergulhar no mar em busca das diferentes moedas, mesmo sem saberem o real valor das mesmas, algo que era a diversão inicial desses viajantes.
Só por esse pano de fundo, já dá para a intenção de Walrond: fazer uma grande crítica ao colonialismo nas entrelinhas, não fazendo do conto algo meramente ficcional. Colonialismo este que vendia o Caribe como um lugar paradisíaco, habitado por pessoas sem qualquer tipo de instrução, de moral, como se fossem animais que pudessem estar sempre ao dispor desses viajantes para servi-los de várias formas… Como se os caribenhos fossem desprovidos de sentimentos e humanidade.
Tudo isso e muito mais (senão o texto ficará extenso), que tem o Canal do Panamá como ambientação, compõe a história de Os Ratos do Cais, que está bem resumida na sinopse. Os personagens criados por Eric Walrond foram muito bem construídos, principalmente com relação à maturidade e vivência de ambos, que era um reflexo de toda rotina de exploração ao qual eram submetidos, cujo trabalho braçal e pesado recaía somente aos peões vindos das ilhas caribenhas. Vale ressaltar que a construção do Canal se deu ao custo da morte de 27.000 pessoas, cujas causas foram febre amarela, malária ou mesmo em decorrência da construção francesa.
Os Ratos do Cais me causou muitos incômodos, não negativos, mas pertinentes e reflexivos. A desumanização foi a coisa mais chocante, pelo fato de muitos homens e meninos serem animalizados como forma de diversão, correndo riscos em águas perigosas, por mais acostumados que estivessem. O tratamento bruto e resumido à questões de trabalho também estava inserido nas relações entre pais e filhos, como se tivessem lhe tomado a sensibilidade. Mas era nítido que esta ainda se mantinha viva em alguns jovens sonhadores e românticos, como Philip e Maura, o que já não cabia muito à San Tie e Maffi, ao meu ver.
É impressionante como a leitura, mesmo sem imagens, faz o leitor construir uma ambientação e jeitos dos personagens. O final do conto me passou três formas de interpretações: inicialmente cômico e triste, mas quando li novamente, me sobrou apenas algo triste e um tanto que sombrio, com horror… Por mais que o conto fale muito da religião obeah a qual os personagens professam (e que existe mesmo), eu prefiro não pensar que alguns fatos tenha ligação com quem professava a mesma, mas o autor nos incita a pensar sobre.
Com uma história envolvente, sonhadora e trágica, Os Ratos do Cais impressiona com a densidade do contexto e da ambientação onde esta história ocorre. Gostei demais da leitura, que é rápida, reflexiva e que educa quanto à construção de um canal artificial feito para encurtar as viagens de grandes navios comerciais, mas que, ao mesmo tempo, encurtou a vida de muitos que trabalharam muito e foram invisibilizados. Vale ressaltar que o Clube da Caixa Preta é um financiamento coletivo da Editora Escureceu, que tem como propósito o resgate de contos esquecidos, porém não menos importantes. Vale muito assinar!
“Eu sou Groot” e professora. Adoro assistir filmes e séries; ler livros e HQs e “eu QUERIA fazer isso o dia todo”. Espero ter “vida longa e próspera”…