Em 1927, uma tragédia provocada pelas águas, atingiu sete Estados do Sul norte-americano: o rio Mississippi transbordou, matando mais de duzentas pessoas e deixando cerca de uma milhão de pessoas desabrigadas. A enchente causou transformações e fez emergir conflitos os sociais e raciais na região, a pobreza, a imigração dos negros do Sul para o Norte dos EUA, mudanças nas questões políticas do país… Tal fato marcou também a música negra e a literatura, deixando ambas em evidência. Uma das expressões mais evidentes da época, foi um poema escrito pelo judeu e ativista político Abel Meeropol, chamado Fruto Estranho [Strange Fruit].
O poema que, mais tarde, se transformou em música, cantado pela diva do jazz Billie Holiday e que causou muito incômodo na época, hoje, também intitula um quadrinho, cujo roteiro é de Mark Waid e os desenhos de J. G. Jones. Não menos polêmica, a HQ foi lançada aqui em 2018 pela editora Mythos, sem muitos alardes, pelo que pesquisei. Eu tive conhecimento da mesma, por acaso, sem nenhuma indicação, no final de 2019. Demorei para ler, mas agora que o fiz, vou te contar como foi! Vem cá, rapidinho!
Mesmo eu já te situando sobre a HQ, vamos de sinopse para não perder o costume:
Na pequena cidade de Chatterlee, Mississippi, a Grande Enchente de 1927 não foi apenas a mais catastrófica enchente fluvial na história dos Estados Unidos. Foi a precursora da mudança. Enquanto o rio transbordante e as barreiras quebradas resultavam na devastação da antiga cidade agrícola por fora, tensões raciais e sociais a rasgavam por dentro. Mas quando um ser de outro mundo cai do céu e desafia tudo que essas pessoas divididas sabiam, as coisas se modificam. para sempre.
J.G. Jones (Procurado) e Mark Waid (Império, Reino do Amanhã) tecem uma poderosa e literária peça de ficção histórica com arte pintada que examina o mito heroico ao mesmo tempo que explora temas como racismo, legado cultural e a natureza humana.
Como eu disse, Fruto Estranho foi lançada com uma certa polêmica nos EUA, pois seus criadores Mark Waid (roteiro) e J. G. Jones (arte) foram duramente criticados por serem autores brancos de uma obra que fala sobre um fato de grande sofrimentos para o povo negro americano. Uma crítica meio que sem lógica, no meu ponto de vista, uma vez que o racismo não deve ser apenas pauta para nós, negros, mas também algo a ser discutido por brancos, já que o ato parte destes últimos. Portanto, na minha opinião, racismo deve ser discutido por todos. E, prova disso, é que os autores construíram tal enredo, baseado na enchente catastrófica ocorrida no Mississippi, sem deixar que os conflitos raciais na região Sul proporcionassem um soco no estômago do leitor.
Nesta HQ, não há “passada de pano” para o racismo, com atos análogos à escravidão, vividos pelos negros sulistas. Logo nas primeiras páginas, você sente uma fala racista, vinda de um personagem branco, como se eles não precisassem se empenhar no trabalho braçal na construção dos diques, uma vez que haviam negros para fazê-lo. É daí pra baixo, se é que tal fala já não é nojenta o suficiente. Após uma discussão calorosa no bar frequentado apenas por negros segregação, né, ouve-se um barulho e vê-se algo caindo do céu. Momentos depois, quando membros da KKK (Ku Klux Klan) perseguiam uma pessoa negra para matá-la, eis que descobrimos o que, ou melhor, quem caiu do céu e não, não foi o Superman: um homem grande, forte, lindo e negro surge para salvar o rapaz da morte.
O homem misterioso e nu, que teve que envolver-se à bandeira dos Confederados para cobrir as partes íntimas, um ato digno de aplauso rs, apareceu no cento da cidade, causando alvoroço e proporcionando aos homens envolvidos na política, grandes ideias com sua presença. A partir daí, acredito que não posso falar muita coisa, senão é spoiler. Mas, o que me me deixou impressionada nessa HQ é como o misto de realidade e ficção trouxe à tona tantas pautas raciais a serem discutidas ao usar apenas um homem, um personagem. Vou citar algumas coisas soltas, pois se eu for destrinchá-las aqui, este texto ficará enorme, meu caro leitor.
Uma das coias que me chamaram atenção, foi a ideia de homem preto como salvador. Ele chegou como um Superman, como o Homem de Aço. Veio do céu, mas não chegou à Terra como criança, mas sim, como um homem formado e com força potencializada. Sendo assim, não falava o idioma local, como acontece com a maioria dos alienígenas nas histórias de ficção especulativa. Porém era detentor de uma sabedoria que foi decifrável aos terráqueos e que iria muito além da força.
Fruto Estranho nos mostra como os resquícios da escravidão ainda estão em nosso meio, mesmo que a obra retrate os Estados Unidos de 1927. As formas de negar o tratamento ao negro como ser humano; a omissão de suas limitações, tendo sempre que trabalhar de forma braçal, independente da condição física; a visão de que um negro só serve apenas para tal tipo de trabalho, negando sua inteligência, uma vez que, as mentes brilhantes retratadas na HQ, quando advindas de um homem negro, não eram exaltadas pelos homens brancos; a falta de liberdade, quando estes desejam ir para o Norte do país e lhes são “cobrados” mais tempo de subserviência ao branco, sendo esta com ou sem remuneração e, a culpabilização do negro por tudo de ruim que acontece, seja uma criança branca que some, uma pessoa branca que é estuprada ou morta, algo que é roubado de alguém branco, para que, no final, pudesse “reafirmar” seus pensamentos racistas como o “tinha que ser preto”…
Mas de onde vem esse título? Bem, Fruto Estranho remete ao poema de três estrofes escrito em 1936 por Abel Meeropol, do qual já falei no início do texto. O poema foi cantado mais tarde, em 1939, por uma das maiores divas do jazz, Billie Holiday, que sempre o cantava no final de suas apresentações em bares, deixando a plateia completamente imersa por um silêncio reflexivo. Abel escreveu o poema após olhar numa revista um retrato de um linchamento, cometido por pessoas brancas, os detentores da justiça, onde apareciam duas pessoas negras penduradas pelo pescoço, nos galhos de uma árvore. Provavelmente, se você pesquisar por “strange fruit“, certamente irá encontrar cenas reais ou ilustrações de tal ato que era cometido na época e brancos exibindo os negros pendurados como troféus.
Falando um pouco da arte: não conhecia a arte do J. G. Jones, mas pelo que pesquisei, em Fruto Estranho ele deu um toque diferente do que era de seu costume, dando um ar realista à sua arte. Particularmente, o que mais me atraiu nessa HQ foi justamente isso, uma vez que lembra muito a arte do Alex Ross, cujo trabalho sempre me deixa maravilhada. Acredito que tenha sido um pedido do Mark Waid e, se não foi, a ideia caiu perfeitamente para a história, que mescla ficção com fatos, e Jones fez um trabalho perfeito.
Apesar de eu ter gostado muito de Fruto Estranho, achei que algumas situações ocorridas na trama poderia ter sido um pouco mais exploradas, pois tive a impressão de que ficaram muito corridas e, consequentemente, pouco explicadas. Mostrar um pouco mais sobre a criança de sumiu ou sobre o passado de alguns personagens em destaque, me proporcionaria a sensação de uma obra completa e não de algo aparentemente corrido, visto que são apenas quatro volumes e, geralmente, uma HQ assim contém seis volumes. Isso também se estende ao final da história, que me agradou em partes. Fora isso, Fruto Estranho é uma HQ importante pelo seu contexto histórico e, consequentemente, te induz a refletir sobre os dias atuais, principalmente se você ouve ou reproduz a ideia de que o racismo não existe mais. Deixarei aqui o poema / música e a tradução do mesmo, que deu título a este quadrinho. Leia e reflita.
Poema / Música
Strange Fruit
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
Tradução:
Fruto Estranho
Árvores do sul dão um fruto estranho,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Frutos estranhos pendurados nos álamos.
Cena pastoril do heroico sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresco,
E de repente o cheiro de carne queimada.
Aqui está o fruto para os corvos puxarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para a árvore pingar,
Aqui está a estranha e amarga colheita
“Eu sou Groot” e professora. Adoro assistir filmes e séries; ler livros e HQs e “eu QUERIA fazer isso o dia todo”. Espero ter “vida longa e próspera”…