Nós, negros de Eatonville, conhecemos um monte de coisas que o homem branco apressado e agitado sequer sonha. Ele é materialista e pouco se importa com as conotações. Eles têm apenas olhos e ouvidos, nós enxergamos com a pele.
Estas são as primeiras linhas do segundo conto de Zora Neale Hurston (1891-1960) inserido à Caixa Preta de abril: Morte Negra. Neste mês, o Clube da Caixa Preta, financiamento coletivo mensal que traz contos de importantes autores negros nunca traduzidos para o português, presenteou os assinantes com dois contos, ambos com a temática do sobrenatural, sendo eles O Mistério Dentro de Nós, o qual já resenhei e Morte Negra, do qual falarei hoje, sem spoiler. Bora?!
Mas, antes disso, a sinopse:
Quem conhece o velho Morgan em Eatonville, sabe que não se pode duvidar de que ele mataria qualquer pessoa e ser pago pelo serviço sem tê-la visto antes. Além disso, há conjurações do praticante de vudu que são mantidas em segredo, mas mesmo assim a população negra do vilarejo conhece muitas histórias que por eles foram testemunhadas e provadas. Dentre estas, existe a destruição de Beau Diddely, a qual dizem ter sido a ‘obra prima’ de Morgan.
O conto em si narra a decadência do garçom Beau Diddely que se envolveu com a camareira Docia Boger. Ambos trabalhavam no Park House e, quando este fechava, Diddely planejava ir para o norte com os turistas brancos. É essa iniciativa de que dá origem à outra, só que da parte da mãe de Docia, que indaga ao rapaz providências de assumir um compromisso com sua filha e de casar com ela. Para a surpresa da Srª Boger e, mais ainda de Docia, as feições de Diddely mudaram num tom de deboche e o mesmo revelou ser casado. A partir daí, seguem momentos onde mãe e filha se definham em tristeza por terem sido enganadas.
Morte Negra é um conto envolvente a tal ponto que leva o leitor a escolher lados, defender personagens e torcer pelo destino dos mesmos. Tal afeição pelos personagens nos conduz a querer chegar à próxima página cada vez mais rápido para então descobrir os desfecho da história. Apesar de ter outras questões nas entrelinhas deste conto, ressalto que vi o machismo em grande parte dele.
Não entendo muito da prática do vudu ou sua finalidade e confesso que fico um pouco temerosa em falar sobre e soar intolerante ou racista (sim, mesmo eu sendo uma pessoa negra). Mas sei que o meio midiático, principalmente a indústria cinematográfica, contribuiu para que essa prática religiosa do continente africano fosse vista de forma negativa mundo a fora(ou ainda contribui, mas eu procuro não consumir). Mas, neste conto, senti que foi dada à prática como um rito de se fazer justiça às pessoas negras, algo que um delegado branco de um pequeno vilarejo não o faria. E isso, faz com que o leitor clame, junto aos personagens, por essa justiça.
Há uma outra situação que o texto meio que me deixa em dúvida, quanto à cor de Beau, pois o fato do personagem querer (e poder!) viajar com turistas brancos para o norte e o fato do conto iniciar uma narrativa que diferencie as formas de pessoas brancas e negras enxergarem situações sérias, sejam elas terrenas ou sobrenaturais, somado à sua atitude com mãe e filha, põe essa dúvida na cabeça do leitor. Isso, talvez (mas talvez mesmo) poderia ser também uma alusão à escravidão, aos abusos que corpos negros, principalmente mulheres sofreram, já que Beau se aproveita de Docia e faz zombaria dos sentimentos que a mesma nutriu por ele.
Morte Negra da antropóloga, folclorista, roteirista, cineasta e e escritora norte-americana Zora Neale Hurston foi publicado em 1921 e um século depois foi traduzido por Karine Ribeiro, revisado e editado por William Alves e Stefano Volp, respectivamente, e publicado pela Editora Escureceu, no financiamento Clube da Caixa Preta. É um conto envolvente, misterioso e que te faz enxergar as coisas de verdade, afinal…
Aquele que só vê com os olhos é muito cego.
“Eu sou Groot” e professora. Adoro assistir filmes e séries; ler livros e HQs e “eu QUERIA fazer isso o dia todo”. Espero ter “vida longa e próspera”…